Ignorância, Submissão e Presunção
IGNORÂNCIA, SUBMISSÃO E PRESUNÇÃO
Nildo Viana
Professor da Universidade Federal de Goiás e Doutor em
Sociologia/UnB.
A ignorância é uma palavra ambígua. Em certos casos, ela significa
falta de saber, ignorar algo; em outros, significa “grosseria” ou
desconsideração pela opinião alheia. O problema é que as palavras são
geralmente descontextualizadas e retiradas da realidade social na qual se
constituíram e ganham significado. Para compreender o real significado da
ignorância é necessário analisar o seu significado, o que remete para outras
questões, como sua inserção na totalidade da vida social, suas determinações e
suas consequências.
A ignorância no sentido de “ignorar algo” ou “falta de
consciência ou saber” sobre alguma coisa é extremamente comum. Nesse sentido,
somos todos ignorantes, pois ninguém sabe tudo, por mais culto, erudito ou
experiente que seja. E por isso não é nada ofensivo ou pejorativo considerar
que alguém ignora algo. No entanto, existe uma diferença de grau. Alguns
indivíduos ignoram muitas coisas e outros menos. Além dessa diferença
quantitativa, há também a qualitativa: alguns ignoram coisas importantes e
outros ignoram coisas supérfluas. Outra diferença é afirmar que alguém ignora
algo, outra é dizer que ela é ignorante, pois no primeiro caso é um não-saber
sobre uma coisa específica e no segundo é algo apresentado como sendo característica
do indivíduo, a ignorância do mesmo seria generalizada. Aqui estamos no reino
das classificações mais abstratas, mas se inserirmos esta discussão no interior
da vida social, podemos entender melhor o problema envolvido.
Ao levar a discussão para o contexto da sociedade, começamos
a perceber que o sentido não pejorativo da palavra é muito pouco usado, tal
como alguém que afirma que outra pessoa “ignorou o seu aviso”, pois remete a
algo bem específico, nada tendo de ofensivo. O uso mais comum é quando se
afirma que alguém é ignorante, ou seja, que ignora muita coisa ou as coisas
mais importantes. Obviamente que esse tipo de afirmação não é necessariamente
verdadeiro, pois numa sociedade fundada na competição social, a desqualificação
do outro e seu discurso é algo comum, e sendo o outro ignorante, então há uma
valoração daquele que faz tal afirmação, um sinal de distinção e superioridade.
No entanto, as pessoas consideradas na sociedade como mais
ignorantes são justamente as pessoas das classes desprivilegiadas, e mais ainda
seus estratos mais empobrecidos. Elas ignorariam uma maior quantidade de coisas
e as mais importantes. Sem dúvida, isso não é totalmente falso, embora a
generalização seja problemática, pois muitos indivíduos das classes
privilegiadas também ignoram muitas coisas e a questão do que é ou não
importante é valorativa, geralmente remetendo para os valores dominantes.
Algumas pesquisas apontam para uma diferença entre um pesquisador médio, que
possui um vocabulário em torno de duas mil palavras, enquanto as demais pessoas
teriam cerca de duzentas palavras. Por conseguinte, podemos afirmar que há uma
tendência (logo, não é algo geral, inevitável, etc., não sendo generalização
nem determinismo) de que as pessoas das classes desprivilegiadas possuam um
vocabulário menor que as das classes privilegiadas (e no interior destas há
também uma tendência à hierarquia, sendo que os intelectuais, devido sua
profissão e atividades cotidianas, tenham um vocabulário mais extenso do que
outras classes).
A questão qualitativa já é mais difícil de ser abordada,
pois ela remete aos valores dos indivíduos. Um pescador pode ignorar as
tendências do mercado financeiro e do processo inflacionário, as políticas
governamentais, o significado do capitalismo, a existência das classes sociais
ou entender praticamente nada de arte, ciência e política institucional. Se ele
ignora tudo isso, ao mesmo tempo ele tem um saber acumulado sobre pescaria,
suas técnicas, localização mais adequada, e diversos outros aspectos
envolvidos, bem como sobre sua tradição familiar, sobre sua vida cotidiana,
entre inúmeras outras coisas. A sua ignorância é relativa, assim como o seu
saber. E para os seus próprios valores, ele certamente considerará que ignora
coisas sem importância e possui consciência das coisas que são relevantes. Sem
dúvida, a pescaria é o seu meio de sobrevivência, e, portanto, é importante
para ele. Contudo, não saber da inflação, das políticas governamentais, das
relações entre as classes sociais, que afetam diretamente seus rendimentos e
situação social, entre outras coisas relacionadas com a sua sobrevivência,
demonstra que os seus valores são constituídos socialmente e que sua percepção
do que é mais valoroso para ele é obstaculizado por sua consciência restrita da
totalidade da vida social. Uma vez que ele não tenha consciência disso, sua
ação e o desenvolvimento de sua consciência ficarão na dependência de outras
pessoas e influências (meios oligopolistas de comunicação, intelectuais,
pessoas de destaque do seu próprio meio, etc.). Nesse sentido, podemos dizer
que a ignorância é mãe da submissão. Quanto mais ignorante for um indivíduo,
maior é a tendência de ser submisso.
Contudo, a ignorância não atinge apenas indivíduos das
classes desprivilegiadas. Muitos indivíduos das classes privilegiadas também
possuem um alto grau de ignorância, seja em matéria de quantidade e/ou de
qualidade. Um artista, por exemplo, pode
ter um grande saber sobre técnicas artísticas e história da arte, assim como o
pescador sabe da pescaria, mas pode entender muito pouco de política e questões
sociais. É por isso que muitos artistas bem intencionados buscam fazer crítica
social, mas ficam num nível elevado de superficialidade e não ultrapassam o
moralismo. Além disso, o modo de vida fútil e os valores dominantes são aliados
poderosos da ignorância de amplos setores das classes privilegiadas. Somando a
isso a preguiça[1]
de diversas pessoas, temos um quadro no qual a ignorância não é um atributo de
classe, pois se espalha por toda a sociedade, mesmo para aqueles que possuem
recursos para superá-la, mas preferem comprar coisas inúteis e supérfluas – ou mesmo
com certa utilidade (como uma lanterna que raramente será utilizada) – ao invés
de um livro, ou então comprar uma revista de fofocas sobre a vida de artistas ao
invés de comprar uma obra literária ou teórica.
A ignorância possui inúmeras determinações, desde os
recursos financeiros, acesso à educação formal, cultura de origem, passando por
valores e interesses, que estão intimamente relacionados com a totalidade da
sociedade, o pertencimento de classe, a ação do Estado e dos meios oligopolistas
de comunicação e do mercado, entre diversas outras. A sua principal
consequência já foi colocada: a submissão. Obviamente que com variações e sofrendo
outras determinações, ela é uma fiel acompanhante da ignorância.
No entanto, a ignorância é entendida também em outro
sentido. O segundo sentido da palavra remete à questão da “grosseria” ou
desconsideração ou desrespeito pelas posições e opiniões alheias. Não é
possível pensar a ignorância como apenas grosseria. Nesse caso seria mera e
pura grosseria. Quando se pensa a ignorância desta forma, ela tem um sentido
bem próximo ao de desrespeito e desconsideração pelas ideias alheias. Isso é
também relativamente comum. Muitas pessoas descartam, menosprezam,
ridicularizam e zombam de ideias, opiniões, afirmações, de outros. Claro que
aqui também atua a competição social, algo estrutural da sociedade capitalista,
bem como a busca de vencê-la, colocando-se como superior, mais culto, distinto.
Na verdade, isso é algo que não deve ser confundido com o caso no qual em um
debate entre duas pessoas e um realmente possui maior saber sobre o assunto em
questão e o outro demonstra ter menos saber, pois aí não há ignorância e sim
grosseria, indelicadeza, etc., a não ser que provocado pela ignorância do
oponente. Ou seja, aqui, nesse caso, a ignorância pode emergir apenas do lado
daquele que sabe menos, pois este é o seu elemento definidor. O ignorante,
nesse sentido, pensa saber mais do que os outros apesar de não ter realizado
estudos, reflexões, pesquisas, para desenvolver sua consciência. Ele apenas
nega e recusa o que o outro tem a dizer, mas não demostra ter nenhum saber real
sobre assunto. É como uma pessoa que ao ouvir dizer que Descartes foi um grande
filósofo, sem conhecer sua obra e ideias, simplesmente diz que ele é “idiota”
ou qualquer outro adjetivo pejorativo. É comum, para tais pessoas, fazerem
afirmações sobre coisas que desconhecem como se fosse verdade e querendo
desqualificar opiniões e posições contrárias, apelando para agressividade,
retórica, desqualificação. Também é constante recusar ideias e afirmações sem
ter nenhuma informação ou consciência (ou tendo muito superficialmente, desde o
“ouvi dizer” a um livro lido e mal interpretado, ou mesmo bem interpretado, o
que significa ingenuidade em depositar a crença na verdade do mesmo sem maiores
reflexões e leituras) do que está em discussão. Alguns seguem correntes de
opinião em voga, transformando o pensamento da maioria em verdade inquestionável.
Isso caracteriza uma das características presentes nas pessoas que fazem isso,
a presunção. Isso significa que a pessoa considera suas suposições não
fundamentadas e sobre coisas que pouco conhece como superiores a ponto de facilmente
desconsiderar ou descartar as demais posições e opiniões. Nesse sentido, a
ignorância é mãe da presunção.
Essa forma de ignorância, associada à presunção, é gerada
mais por pessoas que se apegam a tradições e doutrinas, gerando dogmatismos, ou
por pessoas com uma formação psíquica que promove a presunção como mecanismo de
defesa. Como fenômeno coletivo, é mais comum em grupos ligados a certas
religiões, doutrinas políticas, geralmente atingindo as classes
desprivilegiadas e determinados setores das classes privilegiadas. Também é constante
com pessoas com preguiça mental, que buscam respostas imediatas e se apegam a
elas quando as conseguem, por mais superficiais e pouco fundamentadas que
sejam.
As consequências dessa forma de ignorância são conflitos e
debates, desentendimentos desnecessários, quando são casos mais individuais, e,
quando assume formas coletivas, o dogmatismo que gera intolerância política,
religiosa, etc. e conflitos coletivos entre indivíduos e grupos. A formação de
seitas e a proliferação do dogmatismo (e do anti-intelectualismo) são bastante
comuns em grupos, formais ou não, que se aliam com esse processo. No plano
individual significa não haver avanço intelectual e desenvolvimento da
consciência e no plano coletivo significa uma lentidão no avanço das lutas
sociais ou seu bloqueio em determinados setores.
Em síntese, a ignorância, seja ligada à submissão seja
ligada à presunção, é sempre prejudicial para o projeto de emancipação humana e
para o desenvolvimento da consciência, bem como elemento de estagnação
intelectual dos indivíduos. A ignorância nunca foi aliada do processo de
transformação social ou mesmo individual. Por conseguinte, a superação da
ignorância deveria ser compromisso de todos. A luta contra a ignorância, a
própria e a alheia, é fundamental para todos que lutam pela transformação
social.